O mundo convertido em caleidoscópio: superfícies espelhadas, interditos, reflexos, duplicidades. Imagens de imagens nos espiam enquanto a geometria reorienta fluxos carentes de lógica nas urbes. Realidades intangíveis emaranhadas se cruzam nas ficções das esquinas quebradas pelo excesso de informação. O retrovisor amalgamando o antes, o agora e o depois rumo ao inapreensível.
Quanto mais P.O. Almeida organiza as linhas e os planos da composição das suas fotografias, ao enquadrar fragmentos de mundo no visor de sua câmera em suas andanças, mais uma espécie de caos labiríntico parece se instaurar. P.O. nos faz perceber claramente um abismo entre o olhar humano e o olhar maquínico. Dessa forma, a máquina fotográfica torna-se um instrumento de conversão da paisagem a uma instância caleidoscópica. As imagens produzidas conotam assim uma leitura crítica e bem-humorada sobre como organizamos nossos fluxos pelo caos das grandes cidades e como os apelos da publicidade e do consumo almejam implacavelmente nossa fatigada percepção.
Em 1967, o escritor marxista francês Guy Debord já preconizava uma percepção do mundo estilhaçado por imagens e uma espécie de hipnose que viveríamos a partir dela, em seu célebre livro A Sociedade do Espetáculo:
Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado...
Também em 1967 aconteceu no MoMA, em Nova York, a exposição New Documents, sob curadoria do lendário John Szarkowski, que reuniu três jovens artistas – Diane Arbus, Lee Friedlander e Garry Winogrand –, ícones dessa geração que ajudou a amplificar as possibilidades semânticas da fotografia, contribuindo para que a linguagem se modernizasse sob novos preceitos, como Szarkowski pontua no texto que introduzia a exposição:
Na última década, essa nova geração de fotógrafos redirecionou a técnica e a estética da fotografia documental para fins mais pessoais. Seu objetivo não é reformar a vida, mas conhecê-la, não persuadir, mas compreender. O mundo, apesar de seus terrores, é abordado como a fonte máxima de admiração e fascínio, não menos precioso por ser irracional e incoerente.
A fotografia moderna norte-americana é uma clara fonte de inspiração de P.O. Almeida, um empresário paulistano globetrotter, que há muito adotou a câmera fotográfica como sua fiel companheira nas estradas pelo mundo, ao estilo On the Road (1957), obra seminal de Jack Kerouac, espécie de manifesto literário que inspirou os devaneios dos fotógrafos que puseram mochila nas costas, pé na estrada e câmera na mão, nos anos 1960. O escritor também participou de The Americans (1958), livro no qual o fotógrafo suíço Robert Frank, outro ídolo de P.O., devassou o falido sonho desenvolvimentista norte-americano percorrendo os Estados Unidos.
Perceber a irracionalidade e a incoerência do mundo com admiração e fascínio, como faziam os fotógrafos de New Documents ou Robert Frank, é exatamente o que motiva P.O. nessas suas errâncias mundo afora. Passado mais de meio século da mostra no MoMA, essa instância hipnótica do mundo e suas imagens só recrudesceram. O que era ícone de modernização e de nova percepção da sociedade de consumo, preconizada pelos outdoors, neons da publicidade e carros em grande aceleração pelas autopistas, ao crescer de forma ainda mais desordenada, tornou o mundo uma espécie de armadilha que busca seduzir a todo custo nossa já embotada percepção.
O olhar perspicaz de P.O., porém, no lugar de uma crítica ácida e ensimesmada do mundo contemporâneo, utiliza de suas inspiradas composições estilhaçadas para comentar com ironia e uma gargalhada silenciosa os descaminhos da humanidade. Trata-se de um olhar que constata o mundo que construímos a partir dos nossos desejos capitaneados pelo consumo sem, no entanto, julgá-lo. Em paralelo a isso, sua fotografia homenageia seus ídolos que desbravaram tanto o mundo quanto a linguagem fotográfica.
P.O. é aficionado pelo apuro da composição, pelo esmero em organizar linhas e planos, figura e fundo. Essa sintaxe visual elaborada, gestada em tons de cinzas, cria atmosferas e engendra narrativas misteriosas e surpreendentes. No processo de edição de Meio Visível – título que conota tanto o olhar quanto o aparato fotográfico, mas também sinaliza que só enxergamos o mundo pela metade –, as imagens foram se organizando num jogo de revelações e ocultações que de certa forma restauram a experiência de observar as ruas com a avidez de P.O. Uma mulher e um homem camuflados abrem e encerram o livro. Entre o início e o fim da narrativa, esses protagonistas se encontram e se perdem em seus deslocamentos incessantes, como se estivéssemos no roteiro de um filme de suspense.
A fotografia de P.O. Almeida atualiza questões do modernismo no contemporâneo ao construir um intrincado e bem-humorado labirinto no qual nos percebemos velozes e furiosos em demasia. A fotografia para ele torna-se a possibilidade de desmontar e remontar as peças que formam a paisagem, gerando assim a possibilidade de infinitas combinações narrativas. O mundo nada mais é que um quebra-cabeça aguardando que o decifremos antes de sermos esmagados pelas mandíbulas do tempo, como sinaliza Lee Friedlander:
A câmera não é apenas um espelho d’água e as fotografias não são exatamente o espelho, o espelho na parede que fala com a língua torcida. O testemunho é registrado e as peças se juntam no momento fotográfico, que é muito simples e completo. O dedo mental pressiona o botão da máquina tola, para o tempo e segura o que suas mandíbulas podem agarrar e o que a luz vai manchar.
Eder Chiodetto